Morte encefálica: por que se atrasar a correção de um erro técnico?

 Este artigo foi publicado na Revista do Sindicato Médico de São Paulo, em 15 de abril de 2000.

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https://biodireitomedicina.wordpress.com/2009/01/10/morte-encefalica-por-que-se-atrasar-a-correcao-de-um-erro-tecnico/

 

Os dados revisados em recente publicação veiculada na edição de Dezembro do Brazilian J Med Biol Res sugerem a possibilidade de que uma redução global do suprimento sangüíneo a todo o encéfalo ou somente às estruturas infratentoriais para níveis próprios da penumbra isquêmica por várias horas ou poucos dias pode levar ao diagnóstico incorreto de lesão irreversível do encéfalo ou do tronco encefálico (morte encefálica – ME) em uma parcela provavelmente larga dos pacientes em coma profundo e com ausência dos reflexos cefálicos. As seguintes propostas são apresentadas: 1) a falta de qualquer conjunto de funções encefálicas clinicamente detectáveis não assegura o diagnóstico de morte encefálica ou de morte do tronco encefálico; 2) o teste da apnéia (TA) pode induzir lesão encefálica irreversível e deve ser abandonado; 3) a hipotermia moderada, a antipirese, a prevenção da hipotensão arterial, e ocasionalmente a trombólise intra-arterial podem contribuir para a boa recuperação de uma larga parcela de casos de lesão encefálica correntemente encarados como irreversíveis; 4) testes confirmatórios para o diagnóstico de morte encefálica não devem substituir ou retardar a administração de medidas terapêuticas potencialmente efetivas; 5) de forma a validarem-se os testes cofirmatórios, pesquisas mais aprofundadas são necessárias de forma a relacionar-se seus resultados com níveis específicos de suprimento sangüíneo ao encéfalo. Os critérios atuais para o diagnóstico de morte encefálica (ME) devem ser revisados.

 
Nos pacientes sob penumbra isquêmica global, o fluxo sangüíneo encefálico (FSE) pode ser insuficiente para a sustentação da função mediada por complexos circuitos sinápticos (incluindo-se a consciência, os reflexos cefálicos e a atividade eletrencefalográfica) e para a opacificação vascular ao exame angiográfico, mas ainda suficiente para a preservação da função do hipotálamo (o qual consome 3 vezes menos energia que o córtex cerebral) e da vitalidade do restante do encéfalo. Podem, dessa forma, ser recuperados pelo tratamento hipotérmico (33ºC por 12 a 24 horas), desde que não sejam submetidos ao teste da apnéia, capaz de provocar colapso circulatório irreversível secundário à hipercarbia. Faz-se, portanto, necessária a correlação dos resultados de exames confirmatórios (cuja aplicação não deve retardar a aplicação da hipotermia) com níveis específicos de FSE.
 
A definição da situação ora configurada encontra-se constrangida por diversos e profundos interesses. Alterar-se de forma radical os critérios diagnósticos representaria reconhecer-se a aplicação de critérios falhos e também indutores da morte por 32 anos. Adicionalmente, reconhecer-se-ia a perda de muitos milhares de vidas também por desconsideração do valor terapêutico da hipotermia, relegada à condição de simples critério de exclusão. Alguns podem encarar como irremediável o dano à credibilidade dos transplantes de órgãos vitais, pois as autoridades do direito, da ética e das diversas correntes filosófico-religiosas que aceitaram a redefinição de morte como ME proposta pela medicina não desconsiderariam a necessidade de nova revisão de critérios no futuro, em face de novos avanços da medicina. 
 
O mesmo se aplica para as decisões tomadas no âmbito do direito que, em diversas circunstâncias, dependem de uma definição estável, clara e definitiva de quem está morto e quem está vivo, além de como e quando ocorreu a morte. Por exemplo, criminosos condenados por agressões que resultaram na ME de suas vítimas poderiam pleitear a redução de suas penas, alegando que seu crime deva ser desqualificado como homicídio, por não se poder excluir a possibilidade de que o desligamento do respirador, tenha sido a causa determinante da morte. Situações similares podem desencadear tumultos judiciários, induzindo o sistema legal a retomar a parada cardíaca como o momento da morte, evitando-se novos períodos caóticos no futuro.

Enquanto alternativas como o xenotransplante não forem viabilizadas tecnicamente, a antevisão desses acontecimentos pode determinar inflexível resistência à discussão científica aberta e honesta, em face do grande investimento com que hoje é favorecido o transplante de órgãos, cujos profissionais acumulam proporcional influência política. Apesar de o TA afigurar-se como largamente vulnerável à crítica ética, pode ser encarado como essencial para o transplante de órgãos vitais, pois seria obviamente indesejável que um paciente declarado como morto, sem o teste do reflexo respiratório, voltasse a respirar durante a retirada dos órgãos vitais. Por outro lado, os postulantes em contrário estarão arriscando-se a contribuir para a morte de uma parcela talvez larga dos pacientes em coma, se apenas repudiarem a discussão científica, esquivando-se de refutar o argumento central dessas críticas, o qual é inteiramente auto-sustentável:

“é impossível que o FSE atinja níveis inferiores aos necessários para a preservação da vitalidade neural sem que, previamente, níveis mais altos, que sejam apenas insuficientes para sustentação das funções neurais especializadas (consciência e reflexos cefálicos) sejam ofertados ao encéfalo”.

Resultados menos expressivos tem sido obtidos com métodos de tratamento hipotérmico diversos daqueles relatados pelo neurocirurgião japonês N. Hayashi, evidenciando que diversos fatores alteram a eficiência terapêutica da hipotermia. No entanto, nem esse fato nem os possíveis efeitos colaterais justificam a sua não aplicação, principalmente quando a única alternativa oferecida é nociva e não terapêutica – o TA. Enquanto se busca a optimização dos resultados, de imediato deve ser disponibilizada a metodologia empregada por Hayashi, que leva à recuperação de vítimas de TCE severo, em coma profundo e com pupilas dilatadas e arreativas, a ponto de retomarem a vida cotidiana normal. O método de Hayashi tem por objetivo o controle primário da temperatura intracraniana (não da temperatura sistêmica) seguido de prevenção e tratamento rigoroso dos insultos secundários graves, como hipertermia e hipotensão arterial, capazes de anularem o benefício do tratamento hipotérmico ao encéfalo.

Em cada ano, apenas no Brasil, milhares de jovens, vítimas de traumatismo crânio-encefálico (TCE), são admitidos nos hospitais públicos brasileiros, que se encontram desprovidos de um número de leitos suficiente para a demanda por neuroproteção intensiva, permitindo-se que mesmo casos recuperáveis pelos métodos tradicionais evoluam para uma situação irreversível nos corredores das salas de primeiros socorros. Paradoxalmente, investe-se largas somas no transplante de órgãos vitais, alocando-se parte do número já restrito de leitos de UTI para a sustentação cardiovascular do potencial doador até sua qualificação através dos exames pré-operatórios. A perda dessas vidas relega por muitos anos ao abandono e à dor aqueles que os amam e, muitas vezes, que deles dependem para o seu sustento, educação e formação profissional.

Nada poderá provocar maior dano à reputação da atividade médica do que a subtração da discussão honesta do que respeita ao bem maior do cidadão – a vida. Portanto, ao médico consciente cabe, como alternativa única, defender a vida dos pacientes em coma, ainda recuperáveis, acima de quaisquer interesses, de forma transparente, inequívoca e desassombrada, auxiliando, sempre que possível, a disseminação da discussão em torno do assunto para o alcance imediato da verdade. Ao mesmo tempo, deve ser enfatizado o esclarecimento do público em relação à necessidade do tratamento contínuo de distúrbios tais como a hipertensão arterial (que afeta 16 milhões de brasileiros, e se constitui na maior causa de lesão renal no Brasil), de forma a reduzir-se a necessidade de transplantes. O texto para discussão desse assunto, com a necessária bibliografia encontra-se disponível no:

Brazilian Journal of Medical and Biological Research, ano 1999 (dezembro), vol 32, fascículo 12, páginas 1479-1487, que também pode ser obtido livremente através da rede mundial de computadores no seguinte endereço eletrônico:

http://www.scielo.br/pdf/bjmbr/v32n12/3633m.pdf

Cartas de apoio de especialistas internacionais em ME (incluindo-se entre eles, Alan Shewmon, membro da Comissão Organizadora do III Congresso Internacional sobre Coma e Morte, que ocorreu de 22 a 25 de fevereiro de 2000, e James Bernat, Presidente da Comissão de Ética da Academia Americana de Neurologia) podem também ser alcançadas através da rede mundial de computadores:

http://www.unifesp.br/dneuro/opinioes.htm

Cícero G. Coimbra

Médico neurologista
e orientador da residência médica, HSPM
Professor Livre-Docente,
pesquisador e orientador da pós-graduação
em neurologia e neurociência,
Departamento de Neurologia e Neurocirurgia, UNIFESP

 

Leia outras postagens relacionadas com o mesmo assunto:

Artigo publicado na Revista Ciência Hoje, número 161

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https://biodireitomedicina.wordpress.com/2009/01/08/falhas-no-diagnostico-de-morte-encefalica-valor-terapeutico-da-hipotermia/

Editorial da Revista Ciência Hoje, número 161:

https://biodireitomedicina.wordpress.com/category/editoriais-morte-encefalica/page/3/

Artigo original: https://biodireitomedicina.files.wordpress.com/2009/01/revista-ciencia_hoje-morte-encefalica.pdf 

https://biodireitomedicina.wordpress.com/category/editoriais-morte-encefalica/page/2/

Editorial da Revista dos Anestesistas do Royal College of Anaesthetists da Inglaterra, de maio de 2000:

https://biodireitomedicina.wordpress.com/2009/01/05/transplantes-revista-dos-anestesistas-recomenda-em-editorial-realizacao-de-anestesia-geral-nos-doadores-para-que-nao-sintam-dor-durante-a-retirada-de-seus-orgaos-se-estao-mortos-para-que-a-recomend/

Leia também no site da UNIFESP:

http://www.unifesp.br/dneuro/apnea.htm

http://www.unifesp.br/dneuro/mortencefalica.htm

http://www.unifesp.br/dneuro/brdeath.html

http://www.unifesp.br/dneuro/opinioes.htm   

Revista de Neurociência da UNIFESP, de agosto de 1998:

https://biodireitomedicina.wordpress.com/2009/01/04/morte-encefalica-um-diagnostico-agonizante-artigo-de-0898-da-revista-de-neurociencia-da-unifesp/

Brazilian Journal of Medical and Biological Research (1999) 32: 1479-1487 ISSN 0100-879X – “Implications of ischemic penumbra for the diagnosis of brain death”:

http://www.scielo.br/pdf/bjmbr/v32n12/3633m.pdf

Revista BMJ –  British Medical Journal – debate internacional onde não foi demonstrada a validade dos critérios declaratóricos de morte vigentes:

http://www.bmj.com/cgi/eletters/320/7244/1266

A change of heart and a change of mind? Technology and the redefinition of death in 1968

http://www.sciencedirect.com/science?_ob=ArticleURL&_udi=B6VBF-3SWVHNF-R&_user=10&_rdoc=1&_fmt=&_orig=search&_sort=d&view=c&_acct=C000050221&_version=1&_urlVersion=0&_userid=10&md5=45715d0a00629ba39456d22a891613e6

4 Respostas to “Morte encefálica: por que se atrasar a correção de um erro técnico?”

  1. vitalidade.net - Morte encefálica: por que se atrasar a correção de um erro técnico … Says:

    […] insuficientes para sustentação das funções neurais especializadas … Veja o post completo clicando aqui. Post indexado de: […]

  2. viviane oliveira Says:

    segunda, dia 19
    janeiro de 2009

    Notícias

    Dano neurológico
    Médicos e hospital são condenados por erro médico

    Por Fernando Porfírio

    A Sociedade Beneficente São Francisco de Assis, de Tupã (SP), e mais três médicos terão de pagar pensão mensal antecipada de R$ 2 mil a uma criança de quatro anos que sofreu dano neurológico depois de uma cirurgia. A menina vive em estado vegetativo. O Tribunal de Justiça paulista entendeu que a tutela seria necessária para salvaguardar sobrevida digna à paciente.

    A decisão, por maioria de votos, é da 4ª Câmara de Direito Privado. O dinheiro cobrirá gastos com alimentação, medicamentos e fraldas e para a contratação de especialistas para o acompanhamento da menina. Cabe recurso.

    Polyana Luciana Macedo Oliveira uma parada cardíaca durante a aplicação da anestesia para a drenagem de líquido dos pulmões. Os médicos reverteram a parada cardio respiratória e concluíram a cirurgia.

    Em primeira instância, a Justiça negou o pedido de tutela antecipada. O Tribunal de Justiça reformou a sentença de primeiro grau com base na tese do dano injusto e na necessidade de se obrigar o hospital a manter a continuidade do tratamento por conta do insucesso do trabalho médico.

    O relator do recurso, Ênio Zuliani, reconheceu que a obrigação de indenizar dependerá da confirmação da culpa daqueles que participaram da cirurgia. Mas, para o desembargador, isso não impede de aceitar como possível a tese da responsabilidade dos médicos com os cuidados necessários para a segurança clínica da garota.

    A defesa do hospital e dos médicos sustenta a tese da fatalidade. O relator não aceitou o argumento. Para ele, o hospital e os médicos devem arcar provisoriamente com as despesas suportadas pela família da menina, sob risco de se legalizar uma espécie de abandono da doente, vítima do insucesso de um contrato de prestação de serviço.
    O desembargador Maia da Cunha não reconheceu que haveria indícios de culpa do hospital e dos médicos que participaram da cirurgia a ponto de justificar a antecipação de tutela. O revisor votou contra o pedido. O julgamento foi desempatado pelo desembargador Fábio Quadros.

    [Notícia alterada às 16h de 20/1/2009 para corrigir o nome do Hospital]

  3. viviane Says:

    25/01/2013 20h04 – Atualizado em 25/01/2013 20h05
    Justiça condena médico anestesista de Tupã, SP, por negligência
    Caso foi em 2008 e deixou menina com sequelas nas funções neurológicas.
    Justiça já havia condenado o hospital e outros dois médicos.
    Do G1 Bauru e Marília

    Comente agora

    O Tribunal de Justiça condenou um médico anestesista pelo crime de lesão corporal culposa por negligência médica. A decisão, em segunda instância, determina que o anestesista de Tupã (SP) deve cumprir pena de 1 ano e 4 meses em regime aberto.
    O médico terá que pagar ainda indenização à vítima e prestar serviços comunitários. O caso foi em 2008 e deixou Polyana, hoje com nove anos, cega, surda, muda e tetraplégica.
    Polyana foi internada com pneumonia no hospital São Francisco de Assis em maio de 2008, quanto tinha quatro anos. Devido a complicações da doença, ela precisou passar por um procedimento cirúrgico para drenar o líquido que estava no pulmão.
    Polyana teve uma reação alérgica à medicação e ficou 25 dias em coma. Ao receber a anestesia teve uma parada cardiorrespiratória.
    Para a mãe da menina. Viviane Soares Macedo, o valor estipulado pela Justiça não foi suficiente, pois os gastos com o tratamento custam R$ 7 mil por mês. “Cadeira de rodas, serviço de fono, leite, tudo é muito caro, mas o tratamento dela é prioridade”, conta.
    A Justiça já tinha condenado o anestesista, a direção do hospital e outros dois médicos a pagarem pensão alimentícia no valor de R$ 2,3 mil à Polyana.

    Devido ao erro médico, a menina sofreu sequelas nas funções neurológicas (Foto: Reprodução/TV Tem)
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  4. Cristiane Rozicki Says:

    The Apnoea Brain Death Test
    May Kill The Patient
    Dr. Cícero Galli Coimbra, M.D., Ph.D.
    http://www.geocities.ws/newcannibals/Ch3ApnoeaBrainDeath.html


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