Morte encefálica e transplante de órgãos

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Oportunos esclarecimentos prestados pelo médico neurologista Prof. Cícero Galli Coimbra, da UNIFESP, sobre esse atualíssimo tema

“O tratamento de hipotermia é capaz de normalizar rapidamente a pressão no interior do crânio,impedindo que sua elevação faça cessar a circulação cerebral. Reduz também o edema (inchaço) cerebral”

Imaginemos a cena. Um jovem, vítima de acidente automobilístico, está entre a vida e a morte na UTI de um hospital. Seus pais e familiares, na ante-sala, desejam ardentemente sua recuperação.

Outro quadro, na mesma UTI: um homem de meia idade pode salvar-se se receber um transplante de fígado. Caso contrário, morrerá. E, quanto mais passa o tempo sem receber esse transplante, menores são suas possibilidades de sobreviver. Sua família agita-se para obter a doação do órgão que vai salvar sua vida, o qual poderia vir do jovem acidentado.

Duas situações dramáticas. E a família do homem de meia idade está submetida a uma grave prova de ordem moral. Pois não pode, para salvar seu ente querido, precipitar a morte do jovem que sofreu o acidente automobilístico, por mais improvável que seja sua recuperação. Mesmo que essa recuperação esteja inteiramente descartada pelos mais sólidos critérios da medicina!

Para a equipe médica que vai diagnosticar a morte do jovem, o drama moral torna-se ainda mais agudo. Um erro pode custar uma vida: a do jovem, candidato a doar seus órgãos, se a morte dele for diagnosticada de forma precipitada ou defectiva; ou a do homem de meia idade, se não receber a tempo o órgão que lhe falta para a sobrevivência, e cuja família pressiona para que a equipe autorize logo o transplante.

Neste caso imaginário, a equipe médica sente o poder de vida e de morte em suas mãos. Quase se diria que, mais do que um grupo de médicos, funciona ali um verdadeiro tribunal com poderes aterradores. E obrigações não menos terríveis, porque, como ensina a doutrina da Igreja, os poderosos serão poderosamente atormentados.

O pressuposto para que um transplante possa ser considerado lícito, nos casos em que a extração do órgão a ser transferido importe em falecimento do doador, é que este último já esteja realmente morto.

Em outras palavras, não se pode admitir que alguém seja levado à morte para poupar a vida de outrem. Então, toda a problemática referente aos transplantes esbarra num problema primeiro, incontornável: estará o doador realmente sem vida?

Não é suficiente que o futuro doador esteja desenganado pelos médicos. Pois a previsão pode falhar. E mesmo que fosse infalível, ou seja, que tal ou tal pessoa não pudesse de modo algum sobreviver, não seria lícito levá-la à morte para efeito de transplante.

Em situação tão delicada, compreende-se então, com facilidade, que a equipe médica necessita ter, atrás de si, critérios legais perfeitamente confiáveis de acordo com a moral, atualizados e firmes. É o caso dos adotados no Brasil?

O “Jornal do Brasil”, nos dias 21 e 22 de fevereiro último, publicou duas matérias sobre esse assunto. Nelas, relata os estudo feitos pelo neurologista Cícero Galli Coimbra, que questionam os critérios preconizados pelo Conselho Federal de Medicina. E no dia 1º de março, em editorial intitulado Morte Suspeita, o mencionado quotidiano carioca declara que o cientista levanta uma “dúvida séria”. E a respeito dos doadores potenciais afirma o jornal:

“Deve-se tentar salvar esse paciente e não considerá-lo a priori, por falta de recursos, preguiça ou até ganância desenfreada, simples doador de órgãos”. E conclui que, se assim não for feito, “estaremos matando pacientes, em geral pobres, que poderiam ser salvos, em nome da eficiência e da esperança dos transplantes”.

Sem nos envolvermos diretamente na controvérsia eminentemente científica, e que a esse título escapa às características desta revista, Catolicismo julga útil informar seus leitores a respeito dela. E, para isso, traz às suas páginas declarações do jovem e brilhante neurologista Cícero Galli Coimbra, Professor-adjunto do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), Orientador da pós-graduação em Neurologia e Neurociências, Pós-Doutor pela Universidade de Lund (Suécia). O entrevistado recebeu amavelmente a reportagem de Catolicismo em seu gabinete de trabalho no Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da UNIFESP.

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Catolicismo — Os critérios adotados no Brasil, para a constatação da morte do futuro doador de órgãos, são inteiramente confiáveis? Ou pode suceder a retirada de órgãos de pessoa que, na realidade, não estava morta?

Prof. Cícero Galli Coimbra — Os critérios são adotados em nível internacional, não apenas no Brasil. Encontram-se, no entanto, ultrapassados pelo progresso do conhecimento científico atual, que se contrapõe aos conceitos que levaram à elaboração desses critérios em 1968. Na realidade, são critérios prognósticos, não diagnósticos: a partir de um período curto de observação, infere-se que não ocorrerá recuperação das funções neurológicas, que se constata estarem ausentes através do exame clínico. Um prognóstico ruim pode mudar com o progresso da medicina, que disponibiliza novos e mais eficientes recursos terapêuticos para situações antes consideradas irreversíveis. Ademais, o teste da apnéia constitui-se em um grande risco para esses pacientes em tal situação crítica, pois pode comprometer irreversivelmente a circulação de sangue ao cérebro, induzindo à morte, que deveria apenas auxiliar a diagnosticar.

Catolicismo — No que consiste o tratamento por hipotermia?

Prof. Galli Coimbra — Na redução da temperatura do corpo de 37ºC para 33ºC, mantendo-se o paciente assim por um período que varia de 12 a 24 horas, conforme prática que tem sido empregada no Japão, na Alemanha e nos EUA. Entre outros efeitos, esse tratamento é capaz de normalizar rapidamente a pressão no interior do crânio, impedindo que sua elevação faça cessar a circulação cerebral. Reduz também o edema (inchaço) cerebral, que é um dos principais fatores responsáveis pela elevação dessa pressão, e paralisa as reações químicas que levam as células nervosas à morte. Vítimas de traumatismo craniano grave e de paradas cardíacas prolongadas (30 a 47 minutos de duração) têm tido as suas funções neurológicas completa ou quase completamente recuperadas através desse tratamento.

Catolicismo — Há casos de recuperação total de pessoas que poderiam ser consideradas mortas de acordo com os atuais critérios de diagnóstico de morte encefálica?

Prof. Galli Coimbra — Desde que não tenha sido executado o teste da apnéia, pessoas que preenchem muitos ou todos os demais critérios clínicos foram recuperadas pelo tratamento hipotérmico, vindo a reassumir a sua rotina de atividades diárias meses após o acidente que as vitimou. Os casos recuperáveis podem chegar a 50% ou 70%, conforme a rapidez com que o tratamento é instituído e conforme a causa da lesão cerebral.

Catolicismo — Qual o peso da autoridade dos médicos que estão contestando, no plano internacional, esses critérios?

Prof. Galli Coimbra –– A validade das críticas veiculadas aos atuais critérios através da Internet (http://www.epm.br na parte de “Serviços ao Público”), tem sido reconhecida pela Comissão Organizadora do 3º Simpósio Mundial sobre Coma e Morte (Alan Shewmon e outros), pelo Presidente da Sociedade Católica de Medicina dos EUA (Paul Byrne) e pelo Presidente da Comissão de Ética e Humanidades da Academia Americana de Neurologia (James Bernat), entre outros. As cartas de apoio encontram-se também disponíveis na Internet, traduzidas para o português.

Catolicismo — Que problemas éticos estão envolvidos na polêmica?

Prof. Galli Coimbra — A continuidade do emprego do teste da apnéia, em que se desliga o respirador por até 10 minutos, mesmo com medidas que tentam (mas não conseguem completamente) prevenir a ocorrência da falta de oxigênio durante o teste, é indefensável sob o ponto de vista ético, pois pode determinar a morte através dos efeitos deletérios já citados sobre o suprimento de sangue ao cérebro, e não traz — nem é executado com a intenção de trazer — qualquer benefício terapêutico para o paciente. O médico inglês David Evans, que também apóia essas críticas, em carta disponível na Internet, aconselha os familiares a não autorizarem a realização desse teste.

O não emprego do tratamento hipotérmico (principalmente quando a alternativa oferecida é o teste da apnéia, para benefício de possíveis receptores de órgão) constitui-se, de fato, no mínimo em uma negativa de socorro, mesmo que seja motivada pela falta dos recursos necessários, ou pelo desconhecimento dos resultados surpreendentemente bons alcançados com pacientes muito graves, e já publicados na literatura médica desde 1996. É destituída de coerência a argumentação de que esses resultados são muito recentes ou carecem de mais reiterada confirmação, simplesmente porque os autores dessa argumentação não têm a oferecer nenhuma alternativa terapêutica que tenha propiciado resultados melhores.

Fonte: http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=2B2A92C3-B7DD-54F7-12DCA9133D12DE6A&mes=Setembro2009

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Uma resposta to “Morte encefálica e transplante de órgãos”

  1. Celso Ferenczi Says:

    Favor encaminhar esse assunto para a grande mídia (TV, rádio, jornais, revistas, grandes sites etc.) para que o assunto se torne público e não restrito, como é hoje. Também os médicos deveriam levar esse debate para o Conselho Federal de Medicina e para os Conselhos Regionais de Medicina para sensibilizarem tais órgãos. Por fim, as universidades, especialmente nos cursos de Medicina, Direito e Enfermagem deveriam ter o assunto como matéria obrigatória em Ética Profissional ou Direitos Humanos. Vejo que há muita falta de informações entre os profissionais da saúde e os de carreiras jurídicas. Sou professor de Direitos Humanos da PUC-SP e travo esse debate há muitos anos com meus alunos do curso de Direito.


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